Amigos, abro meu blog para publicar carta de resposta de um monge conhecido meu, ao editorial da Revista MAIS escrito pelo dito filósofo Slavoj Zizek, contestando a posição dos tibetanos em relação à invasão chinesa. Tal editorial é uma peça de "ficção científica" que se não peca pela orientação puramente política , peca pela falta de conhecimento histórico e evidencias comprobatórias:
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Prezados editores do "Mais":
Tive a oportunidade de ler a matéria de título "O Tibete não é tudo isso" de autoria do Sr.Slavoj Zizek e gostaria de tecer alguns comentários críticos em relação aos 9 pontos levantados pelo autor:
1-O primeiro ponto consiste na alegação de que a relação entre a China e o Tibet é longa e complexa e que é problemática a asserção de que o Tibete era um país independente em 1949 quando foi invadido pela China. Acho importante ressaltar que "China" é um termo muito vago no que diz respeito à unidade política desse país. Na crônica histórica chinesa geralmente se emprega o nome de cada dinastia para designar a unidade política. Acho no mínimo problemático afirmar que o Tibete tenha estado sujeito ao poder protetor da China durante alguma das Dinastias nacionais, mas me parece bem mais fácil e mais concreto apontar para a relação entre esses dois estados nas três últimas Dinastias ( Yuan, Ming e Shin ) e na época da república chinesa. Na dinastia Yuan ,China e Tibet fazem parte de uma mesma formação política, mas a própria China nada mais é nessa época do que uma parte do Império Mongol. Se a atual República popular da China quizer reclamar como integrante de seu território toda a extensão territorial do Império Mongol ela teria que reclamar a Hungria e a Ucrânia como parte de seu território. Na Dinastia Ming são expulsos os Mongóis e consequentemente à sua expulsão o território chinês mingua considerávelmente. Não conheço nenhum historiador responsável que afirme que o Tibete fazia parte do território chinês durante essa Dinastia. No que diz respeito à última Dinastia, a Dinastia Shin é polêmico que o Tibete fizesse parte do território dessa Dinastia, mas o problema central não é esse: mesmo que o Tibete tivesse se tornado parte do território dessa Dinastia ela era da mesma forma que o Império Mongol uma unidade política capaz de abarcar a China e o Tibete em seu interior. A Dinastia Shin era uma unidade política completamente distinta da atual República popular da China e sua relação com o Tibete em nada legitima o direito de posse territorial do Tibete por parte desta última. O exemplo dado por Zizek a respeito da origem do termo Dalai Lama é particularmente infeliz: esse título se origina em uma relação contratual entre o Tibete e a Mongólia e não entre o Tibete e a China. Para terminar, existem várias avaliações a respeito da relação entre o Tibete e a república chinesa iniciada em 1911mas não conheço nenhum historiador responsável que reconheça que o tibete fazia parte do território chinês nesse período. Assim sendo, a invasão do Tibete pela China em 1949 assume um caráter nítidamente imperialista e os argumentos apresentados por Zizek se revelam como a expressão de uma ignorância e obscurantismo verdadeiramente inacreditáveis. Semelhante ignorância e obscurantismo não condizem com o ofício de um filósofo.
2- O segundo ponto levantado por Zizek diz respeito ao feudalismo rígido e à ausência de desenvolvimento econõmico no Tibete anterior à invasão chinesa.
Acho estranho que se tente superar esses problemas através de uma ocupação imperialista, mas se impõe aí a seguinte questão: a quem esse desenvolvimento econõmico tem beneficiado? Ao que parece não foi ao povo tibetano.
3- O argumento seguinte consiste em que a destruição dos mosteiros tibetanos não foi um efeito importado pela revolução cultural na medida em que só estavam estacionados 100 guardas vermelhos no Tibete da época e que as destruições foram desenvolvidas pelos próprios tibetanos. Acho duvidosos esses dados históricos e gostaria de solicitar provas de sua veracidade, mas essa não é a questão decisiva. O que importa é que tendo sido essas destruições orquestradas pela ideologia e pela liderança política do governo de Beijing ele não tem como se eximir da responsabilidade por esse processo de destruição cultural e religiosa. Trata-se de outro argumento inacreditável para alguém que pretende representar a filosofia.
4-O quarto argumento tenta racionalizar a invasão chinesa do Tibete em função da presença de agitadores da Cia que buscavam desestabilizar essa região.
Dizer isso é a mesma coisa que justificar a antiga invasão do Afganistão pela Urss. ( existe aí um dado curioso: Tibete e Afganistão possuem um destino comum como objetos da disputa territorial das nações imperialistas )
5- O quinto argumento diz respeito à violência dos protestos. Além de silenciar a respeito da brutal repressão policial voltada para esses protestos evita discutir a complexidade da avaliação contextual e a existência de forças políticas envolvidas que possuem orientação completamente distinta dos Monges budistas e do Dalai Lama. A comparação completamente infeliz com a situação palestina evidencia a meu ver um viés claramente fascista na abordagem de Zizek.
6-Aparece em seguida a alegação de que a China tem investido econõmicamente no Tibete e que esses investimentos tem proporcionado ao´povo tibetano um padrão de vida de que ele nunca gozou em toda sua história. É curioso que ele silencia a respeito da política de transferência de populações e dos privilégios econômicos e sociais que essas populações gozam em relação à população tibetana. Semelhante visão aponta para uma concepção vulgarmente desenvolvimentista, visão essa que parece se constituir no único fundamento das infelizes afirmações de Zizek.
7- O argumento seguinte diz respeito em parte ao abrandamento da repressão física à religião e ao fato parcialmente verdadeiro de que os chineses aprenderam que o capitalismo sem freios é muito mais eficaz que a violência física quando se trata de enfraquecer as relações sociais tradicionais. Zizek confirma essa visão afirmando que em uma ou duas décadas os tibetanos estarão reduzidos a uma minoria semelhante aos índios Norte-Americanos.
Semelhante afirmação implica a meu ver em uma apologia do genocídio cultural orquestrado pelo desenvolvimentismo e pelo capitalismo selvagem.
Tudo isso me parece uma grotesca justificação do genocídio de minorias através da categoria criminosa da inevitabilidade histórica do capitalismo sem freios. Pretendo que a função de um filósofo consiste em criticar radicalmente semelhante visão e em apontar caminhos para sua superação. Zizek parece ter capitulado diante da ideologia neo-liberal e abdicado de seu papel de filósofo.
8- Vem em seguida a visão extremamente preconceituosa de que a motivação da solidariedade ocidental ao Tibete deriva da ideologia "New Age" veiculada pelo Budismo do Dalai Lama. Sendo eu mesmo budista e essencialmente crítico da ideologia do "New Age" sinto-me obrigado a protestar enérgicamente contra uma asserção tão profundamente marcada pelo preconceito e pela ignorância. Mesmo no Brasil as lideranças budistas que lideram o movimento de solidariadade ao Tibete são essencialmente críticas à ideologia do "New Age". Zizek chega ao absurdo de expressar o temor de que essa "ideologia budista do new age" esteja se transformando na ideologia dominante do mundo capitalista globalizado, afirmação essa que além de ser uma verdadeira expressão de ignorância e obscurantismo traz em sí fortes implicações xenófobas e etnocêntricas.
9- O último argumento é o mais sério de todos e me parece expressar o ponto central da visão de Zizek. Ele aponta para uma possível contradição entre o desenvolvimento econômico e a democracia e desenvolve uma verdadeira apologia da eficácia dos regimes autoritários no processo de desenvolvimento econômico. Semelhante visão é um insulto para quem viveu sob as ditaduras militares desenvolvimentistas no Brasil e em outros países da América latina.
E isso aponta para o caráter medíocre da visão marxista de Zizek. Ele ainda parece acreditar no mito de que o crescimento das forças produtivas conduz à desagregação das relações de produção capitalista. Semelhante visão é virtualmente idêntica à visão do Partido comunista Chinês que resume sua atual tarefa como sendo o "desenvolvimento das forças produtivas". Lembro-me de ter assistido na televisão a um discurso do ditador norte-americano George W.Bush que justificava a entrada do mercado norte-americano no Iraque sob o pretexto da necessidade de superar a miséria. A retórica de Zizek não difere em nada a meu ver da visão dos ditadores chinese e norte-americanos.
Para concluir, gostaria de dizer que é precisamente essa crença fatalista na inevitabilidade do crescimento econõmico capitalista e quantitativo, essa superstição que acredita existir alguma relação entre semelhante desenvolvimento e a superação da miséria das massas que se constituiu no verdadeiro monstro do século XX, monstro esse responsável por todas as guerras e genocídios que pudemos testemunhar nesse terrível e doloroso século. A superação de semelhante superstição me parece ser a grande questão do séculoXXI. Concordo com Zizek que existe um conflito essencial entre capitalismo e democracia; a questão para mim consiste precisamente na superação do capitalismo e da crença fatalista no crescimento econômico através da radicalização da democracia. Creio também que a publicação dessa grotesca apologia do genocídio, da ignorância e do obscurantismo coloca uma séria questão para os senhores: como conciliar a liberdade de expressão com a publicação de semelhante apologia do genocídio? Admito que não tenho uma resposta definitiva para essa questão: aguardo o claro posicionamento dos senhores editores do "Mais".
Sem mais, respeitosamente.
Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro.
Monge Shaku Shoshin.
Por isso esse blog possui esse nome... Jigoku No Sora,
o Teto do Inferno
"Esse eu insensato, que tem tão pouca chance de salvação, é totalmente incapaz de resistir a desejos intensos e comprometimentos, a essa sucessão de dias e noites, inegavelmente reais, passada sob o constante tormento das ilusões monstruosas; isso é o inferno." - Hiroyuki Itsuki
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